É extenso, mas vale cada palavra.
"Na linha do chorrilho de asneiradas que temos lido sobre o presente e o futuro próximo da carreira médica, da acção médica e do sistema de saúde português, quero usar o pouco espaço que tenho direito na internet para fazer circular alguma coisa escrita que espero ser clara e tão fundamentada quanto possível. Não será curta, lamento, podem desistir a qualquer altura...mas espero que não o façam.
Como ponto prévio, apelo a que partilhemos isto o mais possível de um mural para outro. A razão: os alvos das notícias e propaganda enganosa sobre a nossa profissão não somos nós, uma vez que sabemos analisar o que se passa, mas sim a opinião pública em geral que está progressivamente a ser afastada dos nossos pontos de vista e a ser levada por propaganda enganosa que circula livre, mas orquestradamente, na internet (vide blogue lastimável do também lastimável site do Expresso que não faz qualquer referência a orientação editorial dos seus blogues nem critérios de escolha dos mesmo).
Mas vamos por pontos:
1.As críticas da classe médica à prescrição por príncipio activo.
A opinião geral é conhecida de todos: "os médicos estão contra esta forma de prescrição porque assim se acaba a "mama" das prendinhas da informação médica!". Contrariar esta crença é muito díficil e não o vou tentar fazer. No entanto, vou reforçar que esta perspectiva é benéfica para o cenário geral que pretende diminuir ainda mais perante a opinião pública a postura da classe médica. As pessoas querem acreditar que passar a responsabilidade da escolha do medicamento para o farmacêutico as levará sempre a que escolham o medicamento mais barato e de mesmo efeito. Não há engano maior, e o tempo o dirá: vai chegar o dia em que as pessoas se queixam que na farmácia "não havia outra vez o genérico", e que "já me trocaram o medicamento outra vez", e ainda "a minha mãe toma estes 4 doutor" e eles são todos iguais, todos genéricos, de marcas diferentes, que certamente fazem genéricos por caridade e nunca por visar o lucro, valha-nos deus...! Quem ganha com isto é a Associação Nacional de Farmácias, que vai ter capacidade total de lidar com os seus stocks, contratos, compras e vendas como se de um Pingo Doce da saúde se tratasse. Mas este cenário é impossível de contrariar: O estado deve milhões de euros à ANF e esta é uma forma de compensação e de assim acabar com as ameaças de fim de fornecimento a hospitais ou da suspensão de comparticipações como a que houve este ano na Madeira... Será um casamento feliz e de elogios mútuos daqui para a frente. Veremos de que forma os doentes, hoje ilustres convidados da cerimónia, reagirão amanhã quando perceberem que afinal não há mares de rosas.
2. A questão das vagas de entrada, a qualidade de ensino e as vagas de internato.
É importante que a mensagem passe rapidamente e que os jovens estudantes do secundário ( e os seus pais e amigos) não pensem que queremos diminuir as vagas para "aumentar o nosso tacho". Primeiro, porque futuramente nem sequer haverá tacho (lá iremos). Segundo, porque é legítimo que, depois de ver a realidade interna numa faculdade de Medicina, queiramos que haja um rácio de alunos por tutor muito menor ( 8 alunos/ 1 médico/ doente sofre 9 exames objectivos em 1 enfermaria com 4 camas = problemasa de logística, conforto e respeito pela privacidade inquestionáveis). Terceiro, e mais importante, o facto de que não faz sentido entrarem 2200 pessoas por ano se no final a capacidade de continuar a formá-los não vai exceder os 1700...
3.A questão do internato médico limitado e das novas políticas de contratação como trabalho temporário.
Esta é uma realidade deprimente contra a qual devemos lutar activamente. Porque faz parte de um plano a longo prazo bem montado e delineado que é o de criar um Sistema Nacional de Saúde completamente renovado, que passará em grande percentagem por privados, parcerias intermináveis e comissões astronómicas para com empresas de trabalho temporário que há hoje estão no mercado com gastos escandalosos.
Concretizando: Entram 2200 estudantes de medicina por ano, patrocinados pelo estado, que paga às Faculdades para os formar. No final dos 6 anos, no entanto, já não os quer no sistema público e descarta as centenas de milhares de euros gastos na sua formação. Absorve 1700, para já, e a esses permite continuar a especialização nas diferentes e clássicas àreas. Aos 500 que sobram (mais os que anualmente vêm das formações no estrangeiro), deixa-os no limbo da formação: não são estudantes, porque já acabaram. Não são médicos, porque não tem especialização. Não têm as competências técnicas e operacionais necessárias para efectuar, da melhor e mais segura forma, uma acção médica com o mínimo de riscos pelo doente.
Então qual é a justificação para isto? Muitos dirão: "as pessoas antes iam para Medicina para terem emprego, mas agora são iguais aos outros, é a vida". Certo, é a vida. Mas relembro: não estão desempregados, simplesmente não se podem sequer empregar porque não têm formação para isso.
Haverá solução para isto? Há. Mas é vil, é suja, é desonesta e é perigosa. É que está implícita nesta nova lei sobre o concurso público de contratação de médicos e que pode ser consultada no DR de 14/5/2012,II Série, nº 1921/2012. Uma lei que prevê a contratação de médicos a prestadores privados de trabalho temporário, em que o médico deverá trabalhar a recibos verdes, com o critério principal de que será contratado o mais barato por hora, médico esse que fará exactamente o que lhe for requerido, desde a urgência geral à urgência de pediatria, às consultas de MGF e seguimento em internamentos. Que especialidade terá este médico? Deverá certamente ser um supra sumo da medicina...mas não, a verdade é que a lei não faz menção a especialistas. Daí que eu me pergunte: estará a ser criada, anualmente, uma legião destes médicos para trabalhar à peça, sem qualidade de vida, sem residência fixa, sem contrato, sujeitos à lei do desespero económico? Se a cada ano ficarem 500 médicos fora do internato, a cada ano que passa haverá mais 500.1000, 1500, 2000 médicos em 4 anos. Todo um ano nacional de curso sem especialização...
O mercado de trabalho temporário será o paraíso dos agiotas e dos desonestos, das empresas de sub-contratações que ganham à comissão à custa do trabalho alheio. Se isso hoje já é uma realidade ( http://www.publico.pt/Sociedade/ministerio-da-saude-contrata-25-milhoes-de-horas-a-tarefeiros-1548426 ), com a contratação principalmente de clínicos estrangeiros, no futuro será feito à nossa custa. É uma vergonha que o Estado Português prefira fazes estes contratos miseráveis em vez de negociar com a classe médica o pagamento sério de horas extraordinárias e de fazer concessões sobre a possibilidade de deslocar um novo e capacitado médico para que este viva com qualidade na periferia ou no interior. E não só os médicos sofrerão deste sistema, numa altura em que se notícia que há enfermeiros a trabalhar por 3,5 euros à hora, o que por mês chega a ser inferior ao salário mínimo.
Pergunto-me como é que é possível que o Estado preferira contratar milhões de horas a um médico tarefeiro para que este faça consultas de MGF durante 3 meses e que depois nunca mais volte àquela terrinha? Onde é que fica o seguimento dos doentes? Onde é que está a qualidade deste acto médico? Será que alguém acredita realmente que "aviar" 5 doentes por hora é o principal objectivo de um acto médico? A produtividade e a qualidade nem sempre andam de mãos dadas. E revolto-me: Como é que se justifica por parte do Estado o pagamento dessas horas a um intermediário (a empresa, e esta que pague o que quiser ao médico) em vez de contratar directamente e acarinhar os profissionais que tanto se esforçou por formar? A menos que esse intermediário faça parte da máquina onde circula o dinheiro português que não chega ao país real e que faz com que Portugal seja considerado um dos países mais corruptos da europa. ( http://www.transparency.org/news/pressrelease/20111201_cpi_pr )
4.previsões, lamentos e apelos
Não é novidade que o Sistema Nacional de Saúde está a mudar. Fecham-se urgências, fecham-se hospitais, fecham-se maternidades, extinguem-se internamentos. Alguns, certamente necessários e justificados. Tal como as novas políticas de transporte de doentes que acabaram com muito dos abusos de pessoas que não precisam desse transporte.
No entanto, temo que muito destas mudanças sejam escondidas atrás desse grande arbusto que é "a crise", um arbusto que permite justificar todos os cortes de pessoal e material que existem hoje em dia. Num futuro próximo, parece-me inevitável que a percentagem de grupos privados envolvidos directamente na gestão de hospitais que eram anteriormente do estado será muito maior. O estado livra-se do "peso" da saúde e passa o testemunho aos reis Midas do negócio que fazem com que o sistema público dê lucro quando, a única coisa certa que deveria dar, seria despesa. Idealmente menor despesa, sim, mas nunca lucro. Além desse peso, o estado livra-se dos médicos e dos enfermeiros que não quer continuar a formar. Os hospitais privados, naturalmente, terão contratos vantajosos com as empresas de trabalho temporário. E contratarão mão de obra qualificada a preço de saldo. Mão de obra que podem deslocar de Lisboa para o Minho com 30 dias de aviso. Mão de obra que podem substituir, a qualquer hora, por outra mais barata, de igual qualidade.
Lamento pelo doente. Pelas pessoas que não têm obrigação de estar atentas a tudo isto, a esta máquina enorme, que não se apercebem do que vai acontecendo aos poucos. Lamento que daqui a uns anos tenham que fazer um seguro de saúde todos os anos porque têm medo de ir a Urgência e deixar lá 50 euros. Lamento que um dia vão à farmácia e que lhes encham o saco de medicamentos com que não se dão bem, mas não há nada a fazer porque mesmo dizendo ao seu médico, este não tem poder de mudar a prescrição. Lamento pelos que vão chegar ao seu centro de saúde e vão ficar frustrados por aquele médico simpático que os seguiu o ano passado agora estar noutro sítio qualquer.
E lamento por nós, estudantes de Medicina, que ainda nem acabamos o curso e já sentimos que vamos em direcção a uma carreira incerta, em que apostámos tanto. Seja por vocação, seja por gosto, seja por capacidade técnica e a promessa de um futuro melhor, aliado a elas...todas são legítimas. Lamento ter deixado para trás tantos momentos em família, por estar deslocado. Penso nas férias de Natal e as passagens de ano a estudar, nos meses de Junho e Julho enfiado numa biblioteca das 9 do dia às 3 da manhã. Lamento que não nos seja dado o respeito pelo trabalho e pela entrega, porque o merecemos. Como o merecem os médicos já formados a ganhar misérias nas urgências (8,9, 10 euros à hora. Não são 30 como muitos querem fazer acreditar!). Lamento que haja tanto ódio em relação à classe médica na opinião pública, que nos pintem como um grande e ganancioso monstro que esfrega as mãos face à doença alheia (certo que haverá alguns assim, que profissão não os tem? ) e que quando aos 18 anos escolhe ser médico já pense apenas em cifrões, cifrões, cifrões...
Mas lamentar não me vale de nada, por isso fica por aqui. O que quero fazer é apelar os meus colegas, aos mais velhos e aos mais novos especialmente. A que nunca baixem a cabeça. A que nunca se deixem levar pelo rebanho. Peço que nunca se minorizem, nunca achem que o esforço foi em vão, nunca deixem que alguém vos diga que são descartáveis, substituíveis! Não somos substituíveis, não somos mais um! E isso não faz de nós prepotentes. Viemos para isto porque acreditamos que podemos levar com esta responsabilidade nos ombros, é uma realidade. E isso é algo que nem todos querem. Nós queremos. Mas queremos fazê-lo com as condições justas e com a capacidade de respeitar a vida do doente e a nossa. Exorto-vos a nunca desistir da luta, a arriscar o pescoço, a arriscar manchar o nome, a sair à rua e a dizer "NÃO! Recuso-me a trabalhar por 5 euros à hora! Eu valho mais!". Quando começarmos a aceitar trabalhar a preço de saldo, estamos a dar o primeiro passo para o abismo dos estágios não remunerados "para ganhar experiência". Nunca. Nunca poderemos deixar isso acontecer.
Não estamos a pedir o mundo. Não estamos a pedir carros com motoristas, não estamos a pedir prémios, não estamos a exigir salários de administradores de empresas públicas. Não queremos estar no olimpo das profissões, só queremos estar no nosso lugar. E vamos lutar com unhas e dentes e palavras para que não nos tirem de lá. Lutámos muito para lá chegar e sabemos que para fazer o trabalho que se nos exige, com a qualidade que os nossos mestres nos passaram, precisamos de manter inabaladas não só as condições de trabalho mas também a dignidade que exigimos para nós próprios. Começa agora colegas, uma longa luta por um futuro digno, ajustado à nossa responsabilidade e à nossa carreira. Vão ser muitos os obstáculos que vamos encontrar mas é essencial que nos mantenhamos unidos nesta longa maratona.
Bom trabalho a todos!
Manuel Martins Barbosa,
aluno do 5º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa"