Nesta altura do ano, as urgências são caóticas. Há muitas infecções respiratórias, hipotermias e afins. Os internamentos estão cheios, não há onde internar os doentes e as macas acumulam-se nos corredores. Às vezes, falta a paciência de quem trabalha mas, sobretudo, falta a paciência de quem está a ser atendido. De vez em quando, lá aparece o personagem agoirento que gosta de lançar uns bitaites em voz alta, só para deitar umas achas na fogueira (que já está pouco quente...). "Isto é uma pouca vergonha!", "Onde é que já se viu?", bla bla bla... e de repente, uma onda de indignação percorre os restantes doentes, que passam a não querer pôr a sonda, que subitamente querem ir embora. "Eu vou-me embora!". Penso que dizem isto em tom de ameaça e que o alvo é o médico. Mas o "eu vou-me embora" não tem exactamente esse efeito em nós, acreditem.
Outro fenómeno muito curioso é o doente que chega muito aflito. Ou porque tem dores, ou porque tem falta de ar... e, quando se sente melhor, acha que pode ir andando. Nem precisa do resultado das análises, nem do raio-x, nem de tratamento dirigido à causa, nem de coisa que o valha. Como se tivesse ido ao supermercado comprar "sais de frutos". Não interessa encontrar o que provocou as dores e a falta de ar. O que interessa é que já passou e, se por acaso, ficar sem ar outra vez, volta amanhã.
Voltam quando se sentem mal. Porque também há quem seja aconselhado a voltar dali a uma semana para ser reavaliado, para saber o resultado de umas serologias e para ser orientado, e não volte. Sabem o que isto é? Dinheiro de todos nós que foi para o lixo. Para não falar de irresponsabilidade e falta de respeito.
As urgências são também um consultório sentimental. E não digo isto em tom de gracejo. Não é raro que, lá pelo meio da história da dor de costas, haja uma mãe que faleceu há três meses. Ou então, umas "picadas" no peito de uma senhora viúva que se sente sozinha. Metade das vindas às urgências são, eu apostava nesta!, por falta de amor. E metade dos internamentos prolongados são, também apostava nesta!, por falta de amor. Não imaginam como somos pressionados a internar os velhinhos que, em consequência da doença, da idade avançada, ficam acordados de noite e não deixam ninguém dormir; ou precisam constantemente de atenção porque podem cair, porque não comem nem bebem pela mão deles... é incrível a facilidade com que estes doentes são propostos, pelos cuidadores, para ficarem no hospital.
Ao mesmo tempo, não os censuro. Deve ser imensamente cansativo não dormir uma noite inteira durante meses, às vezes, anos!, ou não poder sair de casa porque há alguém totalmente dependente de nós. O nosso sistema tem muitas falhas. E não me refiro só ao sistema de saúde, refiro-me também à componente social, que é cada vez mais decadente.
O dia de urgência é aquele dia em que, por vezes, dou por mim a pensar como deve ser bom ser pedreiro.
Inté*