quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Dia de Urgência

Acabado o turno do dia de urgência, guarda-se o estetoscópio, pendura-se a bata. Um gesto simbólico do cair do pano do dia que acabou. Analogia merecida, dadas as cenas - umas mais dramáticas que outras... - a que tantas vezes assistimos (e de que somos protagonistas, também). 
Se conseguíssemos espreitar por detrás da bata pendurada, quantas histórias veríamos das horas que ali passámos; quantos olhares ali ficaram presos; agradecimentos; frustrações... Às vezes, acho que ao despi-la, deixo cair algumas destas histórias. Quantas coisas se perdem no fim daquele dia. Pobre bata. Mais pobre de quem precisa de alguém que a carregue.

Acabado o turno, cai o pano, mas só para alguns. Uma porta é o limite entre o Serviço de Urgência e o mundo corriqueiro. E como custa a acreditar que apesar da doença ali dentro, a vida segue lá fora! Que enquanto eu entro no carro para voltar para casa, há quem fique lá atrás; há quem já não conheça outra moradia. 
É um pensamento egoísta este de pensarmos que a nossa morte é o fim de tudo. Nós morremos e não há uma folha que deixe de cair, uma noite que não venha... tudo fica na mesma. Nós somos mesmo pequeninos.


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Alberto Caeiro



Inté*

11 comentários:

redonda disse...

Poderá ser uma forma de continuar viva, porque depois de partir outros vão sentir, ver e pensar o que eu já senti, vi e pensei.

Estudante disse...

redonda: :)

teardrop disse...

Daqui por uns tempos o estudante de Medicina aqui de casa estará nesse mesmo "pano"... Não sei como será para ele, mas a tua descrição conseguiu tocar-me.
Beijinho

Estudante disse...

teardrop: então também há por aí um estudante de Medicina? Que tudo corra pelo melhor! ;)

teardrop disse...

Sim, o meu marido (e meu colega de profissão) está agora a tirar Medicina :)

Joana disse...

Falta te aprender o mesmo que a mim. A deixar no hospital o que é do hospital. Não sei se algum dia aprenderei.

Estudante disse...

Estudante: boa! :D

J-o-a-n-a: devagarinho chegamos lá ;)

Linhas Cruzadas disse...

pensarmos que somos apenas um ponto minúsculo no meio de algo gigante assusta um pouco...

Paula disse...

Do melhor que por cá tenho lido! Parabéns

Pam disse...

Opaaaa... tu para mim és o modelo de um PROFISSIONAL DE SAÚDE.
Por tudo o que venho lendo aqui, por tudo o que pareces ser. Se um dia ficar muito doente, que sejas tu a estar de serviço. E depois podes deixar cair a bata...

Estudante disse...

Pam: oh! Que querida! Fiquei sem saber o que dizer... certamente, não sou assim tão exemplar, mas todos os dias procuro ser um bocadinho melhor :)