"Não sei onde aninhar este texto.
É o texto de um livro? De um jornal? De um telegrama? Não sei onde se enquadram
os desabafos. Em lado nenhum, talvez. Porque provavelmente há coisas que não
são para vir para fora; são de cá de dentro, são nossas. Drená-las com palavras
é como drenar um oceano por uma palhinha. Sempre há qualquer coisa que
conseguimos purgar mas ah!, meu Deus!, que ínfima quantidade de tudo o que aqui
fervilha. E na vigência desta incapacidade tão frustrante, parece que tudo
fervilha ainda mais!…
Eu vejo-te do meu alpendre, que é
a minha vida. E todos os dias trabalho, arrumo a casa, abro os livros… mas não
há dia nenhum em que eu não me sente aqui por uns minutos a ver-te e a
sorrir-te. Sem te ver, mas a sorrir-te. Quantas vezes durante o dia eu me
encontro a lembrar-me de te contar como aquela música não faz sentido nenhum,
como as pessoas se amontoam nos cafés… mas depois lembro-me de que já não vou a
tempo. É um comboio que já passou. Tenho de me esforçar para me lembrar que te
esqueci. Mas deixaste o teu perfume em quase tudo!...
Então, volto a sentar-me no
alpendre, imersa numa luz dourada e quente, um final de tarde eterno, com a
agitação do Mundo lá em baixo. Só tu caminhas com suavidade, com movimentos
finos, e é a tua discrição que te destaca do meio dessa confusão. Sim, eu sei
que tu não pensas assim. Vês-te sempre mais pequeno do que aquilo que és. Eu
olho-te com carinho, com uma afeição quase maternal. Tenho a pretensão de
acreditar que te decifro melhor do que tu a ti mesmo. Eu percebo essa tua
inquietação, a inquietação das pessoas boas. E vejo a tua luta com ternura e
admiração. E queria dizer-te que acalmasses esse coração; que não te deixasses
cair em queda livre; olha que esse coração também é meu.
Eu sei que antes tu caminhavas na
direcção do meu alpendre. Mas depois foste ficando cada vez mais longe, mas não
distante o suficiente. Eu ainda te vejo daqui. Às vezes, penso: caso te
libertasses das amarras desse Mundo, das convenções, se perdesses o medo, voltarias
novamente aqui? É ingénuo da minha parte pensar que tu querias estar aqui? Se
for verdade que queres estar aqui, é a única coisa que não te perdoo; não te
perdoo tanta falta de coragem e conformismo.
É com serenidade que me recordo
de ti, com a provavelmente ilusória certeza de que somos inevitavelmente parte
um do outro. Porque eu não te amei como amei os outros (terei verdadeiramente
amado alguém?...). Eu amei-te com uma luz que brilhava de um coração que eu não
sabia que tinha, que te atingia a ti mas me iluminava a mim. O amor bom é
assim, não é? Ele reflecte-se em quem amamos e volta para nós, ilumina-nos e
aquece-nos outra vez. Eu lembro-me de, sem querer, fixar-me nos teus olhos e
sentir que o mar revolto em mim se apaziguava, ondulava distante, descobria o areal
e deixava as gaivotas voarem para longe. Tu, nessa tua inquietude, eras a minha
paz mais bonita. É por isso que a minha recordação tua, ainda que dorida e
cheia de saudade, não é uma memória sôfrega, consumidora, desgastante. Eu sei
que, por mais erros que cometamos, por mais que juremos amar outras pessoas,
por mais que procuremos a felicidade noutros corpos e sorrisos, a vida
juntou-nos aos dois – paradigma incontestável. Todos os que encontrei foram
réplicas incipientes do teu sismo. Aquilo que foi é nosso e eu guardo-o com
carinho como se fosse só a aurora de um dia que está por vir.
Desde que apareceu o Mundo, todos
os edifícios, todas as obras de arte, todas as pessoas que viveram, tudo se
uniu para que nos encontrássemos naquele dia, naquele lugar. Para que eu te
pudesse dizer como gostava daquela música, como o céu estava bonito; para que
me pudesses mostrar (...) as tuas canções preferidas. Não
achas que o Mundo foi criado há milhões de anos só para poder ter tempo
suficiente para se aperfeiçoar e ser um sítio perfeito quando nos
encontrássemos os dois? Para que tudo se conjugasse, nada faltasse, para que pudéssemos ter como
complemento ao nosso coração os arco-íris, as flores, os perfumes… se não lhe
tivéssemos dado tempo, se tivéssemos encarnado quando ainda não havia
atmosfera, nunca me poderias ter dito como gostas da chuva e dos trovões. Até
os defeitos deste Mundo são as imperfeições mais perfeitas; as imperfeições que
tu me disseste querer consertar, as injustiças com que te indignaste e que te
fizeram confessar que querias mudar o Mundo.
Eu acredito que nós viémos os
dois daquela explosão de que os cientistas falam e que deu origem ao Universo.
Não digas nada a ninguém, mas eu acho que a libertação de toda aquela energia
que ainda hoje faz os planetas girarem e que deu origem às estrelas, surgiu
quando as nossas almas se encontraram a primeira vez; nós viémos da mesma
estrela. Vagueámos pelo Céu inteiro, rodopiámos e acelerámos, incendiámo-nos
unidos um ao outro e caímos como estrelas cadentes nos ventres das nossas mães.
Nascemos depois, ainda ligados um ao outro (...).
Eu gostava de saber o que me
dirias se um dia me dissesses exactamente tudo aquilo que me queres dizer. Tudo
aquilo que fica por detrás das conversas banais que agora temos. São
palavras mal traduzidas de duas almas que se tentam comunicar uma com a outra.
Ah, se soubesses a mordaça que coloco todos os dias para não te dizer as
saudades que tenho tuas! Quando te falo, bem sei que soa a uma dobragem barata,
mal feita. Não acredites naquilo que te digo; a verdade está naquilo que não
ouves.
Sabes uma coisa? Estás a ir no
sentido contrário. E eu sorrio. Como quando assistimos divertidos à queda
iminente de um amigo que, distraído, não viu que lhe puxaram a cadeira.
Rimo-nos. Sabemos que não vai acontecer nada de grave porque estamos lá para
ampará-lo. Eu vejo-te ir no sentido contrário e não tenho medo porque sei que,
à escala temporal do Mundo, será apenas uma fracção de segundo. É inevitável –
tu vais descobrir (se é que ainda não descobriste), que o alpendre não fica desse
lado. É possível que sejamos só um segundo em tudo o que existe; mas somos o
segundo mais longo.
Ela não te vai ajudar a mudar o
Mundo (..) Ela não vai ficar
acordada contigo a falar sobre as coisas banais do dia-a-dia; coisas sem
interesse, que só ficam bonitas na voz do nosso segundo coração (...).
Estou a ver-te do meu alpendre. E
sorrio. Tenho saudades tuas, sabias? Nós somos pó da mesma estrela. Devíamos
encontrar-nos antes de voltarmos para lá.